“A dívida pública é o principal descapitalizador do Estado só que não entra em discussão”

Embora tenha muita relevância e envolva cifras elevadas dos cofres públicos nas três esferas de governos, a Dívida Pública é um tema pouco explorado e debatido pela sociedade brasileira. Entrevistamos Paulo Lindesay, coordenador do núcleo da Auditoria Cidadã no Rio de Janeiro e da executiva nacional do Sindicado do IBGE (ASSIBGE-SN), para abordar o assunto.
Na conversa ele resgata como é constituído o “sistema da dívida”, a origem dos problemas relacionados, denuncia mecanismos do sistema financeiro e alerta sobre as perdas de direitos dos trabalhadores. Nesse sentido, critica a aprovação da “contrarreforma trabalhista”, a possível “contrarreforma previdenciária” e o adiamento dos problemas com os ajustes fiscais adotados pelos governos.
Qual a origem da crise atual?
Toda a crise atual é resultado de um processo que vem há décadas sendo construído. Se intensifica principalmente no início da década de 70, com o fim da paridade dólar/ouro, em agosto de 1971, no governo Richard Nixon. A partir daí a economia mundial passa a ser hegemonicamente financeirizada. No Brasil, na década de 70, temos o denominado “milagre econômico”, no governo militar. O então ministro da Fazenda, Delfim Neto, dizia: precisamos fazer o bolo crescer para depois dividir. Esse bolo cresceu e nunca foi dividido. Somos o país com a pior divisão de renda do planeta. Na década de 80 com a crise da dívida pública, os juros que eram flutuantes subiram absurdamente de 5% a 20%, o que fez vários países quebrarem. O Brasil, no governo Sarney, pede moratória do pagamento dos juros da dívida externa. Na década de 90, com início das privatizações dos governos neoliberais, o Estado Brasileiro intensifica o desmonte e a entrega dos nossos patrimônios e riquezas naturais.
Como está sendo desenvolvido o trabalho de investigação da Auditoria em relação às empresas de securitização das dívidas estaduais?
Há três projetos no Congresso Nacional (PLP 459/2017, PLP 181/2015 e PL 3337/2015), que dispõem sobre a cessão de direitos de créditos tributários e não tributários dos entes da Federação, a chamada securitização da dívida. Ela é legítima no sistema financeiro, o problema é que estão querendo utilizar as dívidas ativas e outras para emissão de papéis pelo setor financeiro em consonância com as empresas estatais não dependentes, criadas em vários Estados. Inclusive estão fora do teto de gastos por 20 anos, imposto pela Emenda Constitucional nº 95/2016. Essas empresas Estatais já nascem de forma inconstitucional, pois o artigo 173 da Constituição só permite a criação quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo. Uma empresa estatal que negocia papéis financeiros com o mercado não teria nenhuma das duas funções.
No Rio foi criada a Companhia Fluminense de Securitização (CFSEC), a partir do decreto estadual n.º 7040, do Pezão, que autoriza a cessão de créditos de dívida ativa e outros. O governo tem divulgado na mídia que está fazendo uma venda de crédito das dívidas, que são ditas como impagáveis, mas, na verdade, só quem pode cobrar é a Procuradoria da Fazenda. Essas empresas contratarão serviços bancários para emitir papéis, que serão colocados no mercado financeiro e se não forem honrados esses investimentos viram responsabilidade do Estado. Estão transformando um crédito do Estado em dívida pública.
A CFSEC tem a característica específica de negociar além do próprio Estado do Rio de Janeiro e demais municípios fluminenses. Isso pode trazer um mega prejuízo aos entes federados, pois só de dívida ativa pode chegar a aproximadamente  R$ 70 bilhões, dos quais pelo menos metade são recuperáveis. Em Belo Horizonte criaram a chamada PBH ATIVOS, com um capital inicial de R$ 100 mil, que contratou o Banco Pactual para emitir 2300 debêntures, com valor unitário de R$ 100 mil reais, totalizando o valor de R$ 230 milhões que foi comprado pelo próprio banco. Essa operação teve a garantia do município de Belo Horizonte, vai trazer um retorno de mais de R$ 830 milhões ao longo de alguns anos, é um negócio da China. Lá teve uma CPI e no Rio conseguimos bloquear um pouco esse trabalho já bastante avançado. O MPRJ embargou essa empresa, porque ela nasceu com um capital de cerca de R$ 3 milhões e hoje só tem uns R$ 800 mil. Antes dela entrar em operação já gastou bastante do capital público.
Essa foi a mesma engenharia aplicada na Grécia. No Brasil essa operação poderá alcançar os 26 estados, Distrito Federal e os mais de 5.500 municípios. Estão criando um arcabouço jurídico nacionalmente para concretizar essa fraude. Se você dá garantia do Estado é considerado uma operação de crédito, que é proibida na Lei de Responsabilidade Fiscal. Mas as leis federais poderão burlar a LRF e a própria Constituição.
A perspectiva de que a promessa dada, de resolver a curto prazo, na verdade vai ficar pior com esse arranjo jurídico e econômico no médio e longo prazo?
Exatamente, porque o discurso não casa com a realidade. O governo e a grande mídia usam o tempo de engodo para convencer o povo das necessidades do grande capital rentista. No caso do plano de Recuperação Fiscal do Rio de Janeiro não há recuperação do Estado, o que há e uma moratória. Vai ficar três anos sem pagar os juros da dívida e significa que a dívida, que  tem correção diária, será apartada. E no pagamento futuro será feito toda essa correção, de acordo com a lei vigente. O Rio tem pago em média cerca de R$ 6 bilhões do serviço da dívida, em três anos são R$ 18 bilhões mais os juros em cima. Estão tirando a corda do governo do Pezão e jogando para os sucessores, e o Plano de Recuperação pode ser estendido por mais três anos.
Mas Cabral e Pezão não são culpados sozinhos, há décadas existe um processo de desmonte e entrega da gestão estatal. E o papel do Estado está em curso para entrega ao mercado financeiro, às grandes corporações e aos corruptos de plantão. A Lei Kandir, complementar 87/96, que ajuda a implementar a política de exportação do governo neoliberal do FHC, é um dos principais elementos para a descapitalização do Rio. Isentaram as exportações de produtos semielaborados, primários e serviços, e o Rio tinha o ferro e petróleo como grande capitalizador de ICMS do Estado. Só isso deixou o Estado sem arrecadação de mais de R$ 60 bilhões, que deveriam ser compensados pela União e até a presente data nenhum real entrou nos cofres públicos. Além disso, no governo do FHC foi intensificado o processo de privatizações, seriam vendidas empresas estatais para pagar a dívida pública. Mas nesse mesmo período houve uma engenharia aplicada em mais de 20 países, inclusive o Brasil, chamada títulos Brayd. Pegaram os títulos de bancos desvalorizados ou que não tinham mais validade no mercado, os transformaram em títulos globais e depois em títulos Brayd, que foram utilizados para compra das nossas estatais a preços subvalorizados. Eram moedas pobres, nenhum real nos cofres do governo. Consequentemente, não houve dinheiro para pagar a dívida pública.
O governo Marcelo Alencar tinha uma condição bem parecida com o de hoje, pois não tinha dinheiro para pagar o 13º de servidores estaduais de 1995 e o FMI estava propondo uma reforma administrativa, chamada PDV. O Estado pegou um empréstimo com a Caixa Econômica Federal em duas linhas de créditos, que totalizava R$ 180 milhões. Mas vieram carregadas de 44 condicionantes. Quase todo parque estatal foi privatizado: Riogás, Rioluz, Banerj, concessões de Metrô, etc. Além da retirada dos direitos dos servidores estaduais e na cláusula 10 do contrato n. º 121.146 o Estado era obrigado a fazer um superávit primário de R$ 359 milhões no primeiro ano e mais R$ 351 milhões no seguinte. Só que a dívida continua com os juros acumulando por vários anos. Foi a preparação para a Lei 9496/97, que renegocia a dívida dos Estados. É um processo com elos formados esperando o momento certo para colocar em prática.
E a questão da estabilidade do servidor público?
O FHC aprova a Emenda 19, e depois propõe a exclusão do artigo 39 da emenda, que cria um regime único no serviço público. Não fica bem claro, mas pode ser de CLT ou RJU, que a União preferiu. Hoje estão votando a possibilidade de acabar com o RJU e passar para CLT, assim você desmonta de vez o serviço público nas três esferas. A Emenda 19/98 alterou o artigo 167 da CF, quando o governo tiver dificuldades financeiras pode propor a demissão dos servidores e acabar com 20% dos cargos comissionados. Se não for suficiente, demite os não estáveis e se ainda não for suficiente os servidores públicos estáveis.
É um encadeamento, do Projeto  de Lei PLP 248/98 e o PLS 116/2017, que estão no Congresso para serem aprovados, propondo a demissão dos servidores públicos estáveis e quase ninguém presta atenção. Só tem estabilidade constitucional quem estava antes de 5 de outubro de 1983 no serviço público, e após só quem fez concurso para os órgãos. Mas a partir da aprovação desses projetos de leis, não haverá servidor que não poderá ser demitido.
Então desde a década de 90 já vem uma ofensiva contra os serviços públicos?
Daí a necessidade de uma análise histórica, todos os governos contribuíram para chegarmos aonde estamos. No Rio tiveram três leis complementares aprovadas: a 148/2014 da Dilma, a lei 156/2016 e a 159/2017. A primeira delas era boa em certos aspectos, porque estava propondo diminuir os juros das dívidas dos Estados para pra 4%. Além disso, há um pedido de mudança do índice indexador IGP-DI, da Fundação Getúlio Vargas, que mede a expectativa de vida, a variação cambial, a inflação do atacado e é muito mais alto que o IPCA do IBGE. Em 1986 o IPCA substituía o IGP-DI como índice oficial da inflação no Brasil, mas em 1997 na renegociação das dívidas do Estado ele volta a ser utilizado. Se comparar chega a ter diferença de mais de 100%.
A proposta corrente na mídia e dos representantes é a necessidade de enxugar a máquina pública e reduzir os gastos com os servidores, como se fossem os principais fatores da crise.    
Isso é uma falácia porque eles nem colocam a dívida pública, que hoje gira em torno de mais de 40% do orçamento, como centro das discussões. Estão aplicando agora massivamente as operações compromissadas e de swap cambial, que são duas engenharias para garantir lucros dos rentistas em detrimento do enxugamento do fundo público. A sociedade cria o fundo público junto com o empresário, só que o único meio de acessarmos o fundo público é através de políticas públicas. A emenda 95/2016 colocou um teto de 20 anos no orçamento primário da União, e liberou o pagamento da dívida pública. No ano passado gastamos cerca de R$ 223 bilhões com os servidores, enquanto com o serviço da dívida pública mais de R$ 900 bilhões: é o principal descapitalizador do Estado brasileiro. Hoje é o mesmo modus operandi da década de 90,  querem entregar o Estado ao mercado privado então as contratações estão cada vez mais provisórias e precarizadas.
Independente do governo e da economia, os bancos sempre ganharam muito dinheiro.
Estão ganhando ainda mais com essas operações de swap cambial e compromissadas, e com a Emenda 95 você não tem mais as verbas carimbadas que impediam a emissão para educação, saúde, etc. Passou a ser um orçamento público só, então se você não executa vai para a conta única do tesouro onde temos parado mais de R$ 1 trilhão. Como pode um país que diz ter R$ 159 bilhões de déficit com esse dinheiro no tesouro falar que está quebrado? Estamos sendo convencidos por um cenário de crise financeira, fiscal, econômica, política, ambiental, ética, etc, e em todas só tem a saída de ajuste fiscal severo. Do outro lado, há o Brasil real do nióbio, ferro, petróleo, água, terra, riquezas de fauna, flora, minerais mil: esse é o país que sustenta o mundo virtual da economia financeirizada. O Brasil foi atacado porque garante esse modelo virtual.
Com todas essas alterações coordenadas pelo sistema financeiro temos uma base monetária muito baixa. O dinheiro físico que circula na economia, em torno de R$ 262 bilhões, significa cerca de 4% do PIB. Deveríamos trabalhar com pelo menos 40% do PIB. Não existe dinheiro para financiar a economia, porque grande parte virou título público na mão de meia dúzia de pessoas. A partir disso você faz as chamadas operações compromissadas, mas se os bancos não tivessem essa ajuda do governo como fariam para emprestar esse dinheiro? A tendência seria a concorrência baixar os juros.
Temos mais de R$ 380 bilhões de reservas nos dando prejuízo, porque o Banco Central capta em dólares e ganha como garantia o título da dívida pública americana que vale próximo de zero enquanto garantimos com os maiores juros do mundo. No último trimestre de 2017 tivemos um prejuízo de R$ 41 bilhões. Nós que pagamos o prejuízo operacional do Banco Central.
Por que embora essa pauta seja tão importante não está na boca do povo?
Devido ao modelo político instalado no país. Apesar de todos concordarem que a auditoria é importante existem muitos partidos, até mesmo de esquerda, que são financiados pelo grande capital. Contribuem oficiosamente com ela, mas não colocam o tema como primordial para a sociedade. Além da mídia, os partidos políticos e os sindicatos, que estão ligados muitas vezes ao projeto político do capital. Grande parte das candidaturas foram financiadas pelo grande capital rentista, então como será? A auditoria era uma das bandeiras históricas do PT… Por que em 2000 conseguimos fazer um plebiscito com mais de 6 milhões de pessoas? Tinha a igreja católica com as comunidades eclesiais de base, o PT surgindo e banca em cada esquina. E agora mesmo com todas as novas tecnologias não conseguimos aglutinar pessoas em torno dessa causa.