“A auditoria da dívida irá desmascarar onde de fato está o rombo das contas públicas no Brasil”, afirma Fattorelli

Por Eduardo Sá, da Assemperj

Desde os anos 2000 a associação Auditoria Cidadã da Dívida luta pela transparência dos endividamentos dos entes federados brasileiros e pela auditoria das finanças públicas a nível nacional. Para analisar a atual proposta de reforma da previdência do governo federal, conversamos com a auditora fiscal Maria Lucia Fattorelli, fundadora e coordenadora da entidade.

Na entrevista, realizada por e-mail, ela fala sobre os privilégios do sistema financeiro nas duas últimas décadas em benefício dos bancos e em detrimento do povo brasileiro. Segundo ela, a mídia tradicional, financiada pelo mesmo setor que será ainda mais beneficiado, dita a agenda diariamente em defesa de uma reforma da previdência que não atenderá a maioria da população. A crise econômica alastrada desde 2014 é, na sua opinião, uma imposição da política monetária do Banco Central que tende a piorar com a autonomia da instituição pregada pelo governo Bolsonaro.    

Por que você tem dito que se for feita a auditoria da dívida pública não será necessária a reforma da previdência?

Porque a auditoria da dívida irá desmascarar onde de fato está o rombo das contas públicas no Brasil. Não está na Previdência, mas sim nos sigilosos gastos financeiros com o Sistema da Dívida. Como dizem os representantes do governo, o objetivo da PEC 6/2019 é “economizar” centenas de bilhões em 10 anos, ou seja, deixar de pagar dezenas de bilhões em benefícios assistenciais e aposentadorias para que os recursos se destinem ao pagamento de mais juros ao privilegiado setor financeiro.

Ao longo de décadas, a chamada dívida pública tem absorvido cerca de 40% do orçamento federal, todo ano, e exigido contínuos  cortes de investimentos sociais: contrarreformas como a da Previdência, entrega de patrimônio público por meio das privatizações de estatais estratégicas, entre outras medidas radicais recentes, como a Emenda Constitucional 95, que estabeleceu teto para todas as rubricas orçamentárias, a fim de que sobrem mais recursos para os gastos financeiros, que ficaram fora do teto.

No período de 1995 a 2014, por exemplo, produzimos mais de R$ 1 trilhão de Superávit Primário, ou seja, o volume de “receitas primárias” (principalmente os tributos) superou em mais de R$ 1 trilhão a soma de todas as “despesas primárias” (que compreende os gastos sociais e investimentos em todas as rubricas orçamentárias, exceto os gastos financeiros com a dívida pública). Portanto, gastamos menos com as áreas sociais (inclusive a Previdência) do que arrecadamos em tributos! Dessa forma, durante esses 20 anos, o déficit nominal das contas públicas não decorreu dos gastos primários, mas sim dos gastos financeiros com a chamada dívida pública.

Apesar dessa economia forçada de mais de R$ 1 trilhão, que absorveu recursos que deveriam ter financiado o desenvolvimento socioeconômico, ainda assim, ao longo desses 20 anos, o estoque da dívida interna federal saltou de R$ 85 bilhões para R$ 4 trilhões em 2015. E continua crescendo exponencialmente, tendo alcançado R$ 5,523 Trilhões em Dezembro/2018.

“Durante esses 20 anos o déficit nominal das contas públicas não decorreu dos gastos primários, mas sim dos gastos financeiros com a chamada dívida pública”, destacou Fattorelli. Foto: Auditoria Cidadã.

E essa dívida elevada é que tem sido a justificativa para a PEC 6/2019. Mas que dívida é essa? Só uma auditoria integral poderá responder. No entanto, os trabalhos da Auditoria Cidadã da Dívida já revelaram que quase a totalidade dessa dívida decorre de mecanismos financeiros que geram dívida sem contrapartida alguma ao país ou à sociedade, enquanto os recursos são transferidos para o sistema financeiro.

Em um único mecanismo desta questionável dívida, nos últimos 5 anos os bancos ganharam R$ 526 bilhões: valor da remuneração da sobra de caixa dos bancos pelo Banco Central, através do uso indevido das “Operações Compromissadas” que superam a casa do trilhão desde 2016! Bancos ganharam outras centenas de bilhões com os juros exorbitantes também definidos pelo Banco Central, e com os sigilosos contratos de swap cambial também oferecidos pelo Banco Central. Aí é que está o privilégio obscuro, sigiloso, que beneficiou os bancos enquanto quebrava a economia brasileira e criava a “crise” que está servindo de justificativa para a destruição da Previdência Social e para a entrega brutal de patrimônio por meio das privatizações de empresas estratégicas e lucrativas, como a Eletrobras, Petrobras etc. 

Portanto, se for feita a auditoria e interrompida essa política monetária suicida praticada pelo Banco Central, a “crise” terá fim imediatamente, pois a economia será irrigada por mais de 1 trilhão que hoje está esterilizado no Banco Central, gerando dívida pública, despesa elevadíssima com a sua remuneração aos bancos, e escassez de moeda nos bancos, o que faz com que as taxas de juros de mercado no Brasil sejam indecentemente elevadas, quebrando indústrias e demais empresas.

Liberada essa montanha de dinheiro, os bancos terão que baixar os juros para emprestá-la, o que reaquecerá a economia, a geração de empregos e, logicamente, a arrecadação de contribuições sociais, extinguindo o falso argumento de que não tem recursos para pagar a aposentadoria e os benefícios assistenciais…

Em artigo recente você defendeu que o déficit da previdência é fake, por quê?

O governo tem justificado a contrarreforma da Previdência por meio de uma conta falsa que produz um “déficit” ao comparar o valor arrecadado atualmente com as contribuições sociais ao INSS – pagas tanto pela classe trabalhadora como empresarial – com todo o gasto com a Previdência Social. Mas o governo não leva em conta que as pessoas que hoje estão aposentadas efetuaram as suas contribuições no passado, as quais foram usadas para construir Brasília, Ponte Rio–Niterói, a siderúrgica CSN e muitas coisas mais!

Também não leva em conta que a Previdência está inserida na Seguridade Social, juntamente com a Assistência Social e a Saúde, conforme está escrito no Art. 194 de nossa Constituição Federal. Essa proteção social é tão importante que os constituintes cuidaram de estabelecer fontes de receitas diversas, pagas por toda a sociedade (Art. 195), como no caso da COFINS, CSLL e outras contribuições e receitas. Quando a conta é feita honestamente, computando-se todas as fontes de receitas e todas as despesas com a Seguridade Social, verificamos que o discurso do “déficit” é fake! De 2005 a 2016, a Seguridade teve um superávit de mais de R$ 1 trilhão, em valores de 2018, que foram desviados para outros fins, em especial para o pagamento de juros da chamada dívida pública.

Em 2016, pela primeira vez não houve sobra de recursos na arrecadação das contribuições da Seguridade Social; Não por culpa dos direitos sociais, mas sim pela irresponsabilidade do próprio governo que além de conceder desonerações exageradas a diversos setores, errou feio na política monetária e produziu a crise que jogou mais de 13 milhões de pessoas no desemprego, além de 37 milhões de pessoas na informalidade, comprometendo brutalmente a arrecadação ao INSS.

Mas ainda assim, não cabe falar em “déficit”, pois o próprio Art. 195 já previu a destinação de recursos dos orçamentos fiscais de todos os entes federados, além das contribuições sociais, para financiar os gastos com a Seguridade Social.

De acordo com os dados levantados pela sua organização, qual o cenário do Rio de Janeiro e quais as perspectivas com a aprovação da PEC 6/2019?

O Rio de Janeiro tem repetido a política econômica federal, ao não questionar uma dívida já paga várias vezes, e que está sendo utilizada como instrumento de chantagem para a imposição de contrarreformas da previdência, aumento da contribuição previdenciária dos servidores públicos e privatizações.

Além de já ter pago muito mais do que devia à União, diversas parcelas da dívida refinanciada pelo Estado do Rio de Janeiro são totalmente ilegítimas, como por exemplo o passivo do BANERJ, de R$ 3,88 bilhões (em valor de 1998), que foi somado à dívida refinanciada e passou a ser atualizado mensalmente pelo IGP-DI, e ainda por cima, acrescido de juros de 6,17% ao ano, crescendo como bola de neve.

No caso da PEC 6/2019, apesar de ser uma “Reforma” da Previdência em nível federal, ela prevê que as perdas de direitos dos servidores federais se estenderão a todos os servidores estaduais e municipais. Por isso é preciso denunciar o Sistema da Dívida, que tem levado os governadores do Rio de Janeiro e vários outros estados a se sujeitarem às imposições da União com seus “Planos de Recuperação Fiscal” que na verdade significam a subordinação total a Brasília, para se viabilizar o pagamento de uma dívida jamais auditada.

Qual a avaliação sobre esta PEC?

A PEC 6/2019 tem 2 objetivos claros: adiar, reduzir ou até extinguir direitos para “economizar” recursos públicos que se destinarão ao pagamento de gastos financeiros com o Sistema da Dívida; e instituir o modelo de “capitalização”, que significa a entrega  da Previdência Social aos bancos e representa graves riscos para a classe trabalhadora e acaba de vez com o compromisso geracional que sustenta a Previdência Social solidária e sustentável de que trata a Constituição de 88.

A Previdência Social solidária é integrada ao funcionamento da economia do país, já que a sua sustentabilidade está fundada na garantia de emprego digno para as pessoas economicamente ativas, cujas contribuições garantirão o pagamento daqueles que já cumpriram o seu período laboral e se aposentaram.

No modelo de capitalização não existe solidariedade e nem mesmo Previdência! Se você olhar no dicionário, verá que previdência é sinônimo de segurança. O modelo de capitalização não tem nada a ver com “segurança”. Pelo contrário, cada pessoa terá sua continha individual dependente do funcionamento do mercado financeiro, que fará aplicações “de risco”! Podem dar errado e o mercado não terá responsabilidade alguma com o pagamento de benefício futuro. O governo também não! Isso é Previdência??? Claro que não! Isso é colocar a classe trabalhadora para entregar parte de seu salário para o mercado financeiro que não terá compromisso algum com o pagamento de aposentadoria no futuro.

Em relação às contas públicas, qual a expectativa com o governo Bolsonaro?

Se não for feita uma auditoria da dívida, continuaremos a destinar cerca de 40% do orçamento federal para juros e amortizações desse questionável Sistema da Dívida, sacrificando a possibilidade de investirmos no desenvolvimento econômico e social. Tendo de pagar imensas quantias ao setor financeiro, o governo fica refém da contínua necessidade de emitir cada vez mais títulos da dívida para pagar os juros que estão vencendo, submetendo-se às taxas de juros absurdas exigidas pelos bancos.

Em 2018, por exemplo, em plena recessão, a taxa média de juros que o governo federal pagou sobre a dívida pública federal foi de cerca de 10% ao ano, enquanto países ricos praticam taxas negativas e reduzem até o empréstimo compulsório para irrigar a economia com recursos a baixo custo e combater suas crises. O Brasil faz o caminho errado: juros elevadíssimos, enxugamento de mais de 1 trilhão de moeda, mais despesa financeira com juros, menos atividade econômica, menos arrecadação, aí geram-se “déficits primários” que são usados como justificativa para a retirada de direitos e privatizações, quando na verdade tudo isso é produzido pela política econômica suicida praticada pelo Banco Central.

Quanto à expectativa com esse governo, por enquanto não se vê a menor sinalização de modificar essa política econômica suicida praticada pelo Banco Central. Pelo contrário, o governo já anunciou que irá acelerar a PEC que trata da “independência” do Banco Central, de tal forma que somente o próprio mercado financeiro poderá administrá-lo e o presidente da República sequer poderá demitir seus diretores… 

A mídia tem contribuído de que forma nesse processo?

A grande mídia só dá espaço para os que escrevem o que agrada ao mercado… Claro! é o setor financeiro que financia os mais caros anúncios. Todo santo dia os grandes jornais aterrorizam a população em relação à necessidade de aprovar tal contrarreforma, como se os poucos direitos da classe trabalhadora brasileira tivessem alguma relação com o rombo das contas públicas em nosso país. Na realidade, a grande mídia é financiada pelo setor financeiro, e só chama para “debater” a “reforma” analistas alinhados com o pensamento dos grandes bancos e investidores, que estão de olho na previdência privada. Mas juntos – classe trabalhadora e movimentos sociais – já os derrotamos em 2017, na reforma proposta por Temer. Vamos derrotá-los novamente agora, porque a proposta de Bolsonaro é ainda pior!